Uma aventura e tanto. Assim pode ser definida a viagem de cerca de nove mil quilômetros que os itapirenses Júlio Luís Recchia e Fernando Trigo Martins fizeram por três países da América do Sul com suas motos.
Tudo começou há cerca de um ano, quando Júlio Recchia, que é cirurgião-dentista, comentou com o colega de profissão Fernando Trigo Martins a intenção de realizar uma viagem de moto para conhecer o deserto do Atacama, no Chile. “De pronto, ele disse: eu vou”, lembra Recchia. “Convidei também o casal de amigos Célia e Ézio Santini, que também toparam a empreitada”.
No dia 26 de outubro, depois de uma reunião para definir detalhes, começou a viagem de nove mil quilômetros. Recchia em uma BMW G650 GS e Trigo Martins com uma XRE 300 da Honda. “Os outros dois viajaram de carro por causa de um problema de coluna que afetou a Célia”, explica Recchia.
O grupo deixou o país por Foz do Iguacu-PR, depois de conhecer as cataratas. “Um bom começo de viagem, pois elas impressionam pela força e beleza”, revela Recchia. O grupo entrou em terras argentinas debaixo de chuva e com muita lama pela frente. “Tínhamos que chegar a Corrientes, há 620 quilômetros ao sul, até o fim do dia”, recorda.
A chuva passou e os quilômetros também. “Chegamos em Corrientes no período da tarde e tínhamos que descansar bastante, pois no dia seguinte iríamos atravessar todo o norte da Argentina através do chaco, num total de 800 quilômetros até Metan, na província de Salta”, lembra Recchia.
Os viajantes deixaram Corrientes, cidade banhada pelo Rio Paraná, e logo foram extorquidos por um policial argentino, que alegou que haviam feito uma conversão errada e teriam que pagar multa. “Não tínhamos feito nada de errado, mas entramos em ‘acordo’ com o policial e seguimos viagem, pois tínhamos muita estrada pela frente”.
E essa estrada era a famosa Ruta 16, uma reta de quase 800 quilômetros que liga Corrientes a Salta e que tem, bem no meio do caminho uma cidadezinha que atende pelo sugestivo nome de Pampa del Infierno. “É uma homenagem dos habitantes da região ao lugar onde faz um calor do cão”, relata Recchia. As retas terminavam no horizonte, o calor chegava aos 45 graus, sol abrasador por cima e o calor do motor da moto por baixo davam o tom. Os postos eram raros e a preocupação com falta de gasolina constante. “No fim da tarde a temperatura amainou, começou a soprar uma brisa e ao longe, no horizonte, começou a aparecer recortada a cordilheira”, recorda o dentista motociclista.
Os viajantes pernoitaram em Metan e rumaram para San Salvador de Jujuy, uma cidade agradável, segundo Recchia. “A essa altura já estávamos adaptados à Argentina, acostumamos a comer empanadas, chourizo, papas, lomito. Arroz e feijão nem pensar”, lembra. “Palavras como ustedes, hablar, habitacion, cochera, poquito, gracias, pollo, matrimoniale já faziam parte do nosso vocabulário”.
E, apesar de toda a rivalidade por conta do futebol, garantem que foram muito bem tratados pelos argentinos. “Los hermanos argentinos, ao contrário do que se apregoa por aí, sempre nos trataram muito bem”, agradece Recchia.
“Fomos conhecer Humauhaca e Purmamarca, a cidade das sete cores, já na pré-cordilheira. Estávamos nos ambientando para dar o grande salto que era a travessia da Cordilheira dos Andes pelo Paso Jama, chegando até San Pedro do Atacama, coração do deserto do Atacama, no Chile”, explica. Foram aproximadamente 400 quilômetros através da cordilheira com altitude variando de três mil e quatro mil e oitocentos metros.
“Saímos de San Salvador de Jujuy debaixo de chuva, mas logo que embicamos para a cordilheira a chuva cessou e um céu azul se fez presente”, conta Recchia. A estrada serpenteava e subia, o ar ia ficando rarefeito, a umidade do ar cada vez mais baixa, a luminosidade extrema obrigava os motociclistas a usarem óculos escuros.
Depois de chegar a 4.200 metros de altitude os aventureiros começaram a descida. “Seguíamos na direção de Susques, uma cidade perdida na imensidão dos Andes, mas as surpresas continuavam, lhamas começaram a aparecer, as alpacas, os flamingos”, conta Júlio Recchia. “Não conseguimos chegar a San Pedro do Atacama pois as belezas eram muitas e demoramos quase um dia para percorrer 200 quilômetros, então pernoitamos em Susques”.
Susques é um lugar mágico, o povo é descendente dos incas, sem miscigenaçao, as construções bem típicas dos Andes. “E a siesta é uma instituiçao”, explica. “Tudo fechado à tarde”.
Na fronteira Argentina-Chile, um motivo de comemoração. Afinal era mais um país pela frente. A cordilheira agora estava ficando para trás e em seu lugar surgia o imenso deserto do Atacama, com suas dunas, planícies, montanhas multicoloridas, vulcões com seus picos gelados, lagunas verde esmeralda, no meio do deserto, e mais salares. “Estávamos no Atacama, das linhas de Nazca e tantos outros mistérios”, conta o dentista aventureiro. “Não tem como descrever tanta beleza”.
Começaram a descer em direção a San Pedro de Atacama, sempre observados pelo vulcão Licancabur e logo estavam a dois mil metros de altitude, em San Pedro. “Havíamos atravessado a cordilheira pelo Paso Jama e estávamos no coração do Atacama”, lembra.
San Pedro é um lugarejo muito especial, ali se encontra gente de todo lugar do mundo e de todo tipo. “Ficamos alguns dias ali e seguimos viagem, pois a meta era chegar ao Oceano Pacífico”, explica Recchia.
Depois de 340 quilômetros os aventureiros chegaram a Antofagasta, uma cidade portuária e diante deles estava o Pacífico. “A meta agora era descer em marcha acelerada em direção a Santiago, de onde atravessaríamos a cordilheira novamente em direção a Argentina”, explica.
No dia seguinte os viajantes desceram pela rodovia panamericana por mais 700 quilômetros, tendo o deserto do Atacama do lado esquerdo e o Pacífico do lado direito. Fortes ventos laterais e frontais dificultavam e faziam as motos consumir mais combustível, “A moto do Fernando ficou sem gasolina no meio do Atacama, foi um momento tenso, mas por sorte um caminhoneiro se ofereceu para levar a moto no baú até o próximo posto, levantamos a moto no braço e a colocamos no caminhão”, recorda.
Depois de pernoitar em Vallenar, no dia seguinte foram mais 610 quilômetros até San Felipe. “O deserto ainda nos acompanhou até La Serena”, recorda Recchia. “Evitamos passar pelas grandes cidades, estávamos tão contaminados pela beleza e simplicidade dos lugares e povoados, que congestionamentos, buzinas e grandes aglomerados de pessoas estavam fora de cogitação, por isso não fomos a Santiago e sim para San Felipe, uma cidade simpática e acolhedora que fica aos pés da cordilheira que iríamos atravessar novamente, só que dessa vez pelo Paso Los Libertadores”.
Começaram a subir e o contraste de um céu límpido e azul ao extremo contra as montanhas enormes e prateadas de gelo os deixava extasiados. “O perigo de ficar admirando essas belezas era passar reto numa curva, esquecer que estava em cima de uma moto”, recorda. “Subimos os famosos caracoles, uma série de curvas fechadas que nos levam para a altitude de 3.200 metros em pouco tempo para logo depois chegar a um lugar chamado ponte inca, um fenômeno da natureza onde um rio escavou uma rocha formando um arco em forma de ponte”.
Os aventureiros seguiram em frente até o Parque Nacional do Aconcágua, que abriga a montanha Aconcagua, conhecida como sentinela de pedra, a mais alta da América com 6.960 metros. “Linda de se ver contra aquele céu azul e algumas nuvens que na altitude adquirem uma forma mais etérea, leviana”, elogia Recchia.
Segundo o dentista. o povo chileno também foi muito hospitaleiro e acolhedor. Dai
por diante novamente aceleraram para no dia seguinte chegarem a Mendoza, região de famosas vinícolas. “Mas a cidade era grande e tocamos em frente”, explica. “Decidimos cruzar rapidamente a Argentina e evitando grandes centros como Rosário e Buenos Aires até entrar pelo Uruguai”.
De Mendoza a Villa Maria foram mais 620 quilômetros. No outro dia, de Villa Maria a Villaguay, mais 600. “Com o tempo acostuma-se a viajar grandes distâncias de moto por dia, dá pra rodar 700, 600 quilômetros, quando tínhamos uma jornada de 400 quilômetros para fazer achávamos uma moleza”, conta.
Em Villaguay estavam próximos da fronteira com o Uruguai e lá foram conhecer a terra do presidente Pepe Mujica, um homem simples como um campesino. “O Uruguai surpreende de cara, entramos por Payssandu, uma cidade limpa, ajardinada, com um povo muito simpático e falante, e subimos em direção à fronteira com o Brasil e por todo o caminho a boa impressão que tivemos do povo uruguaio só aumentava”, elogia Recchia.
Estavam viajando há 20 dias. A gana de voltar ao Brasil era grande. “Entramos por Uruguaiana, na aduana chilena e argentina sempre tivemos que apresentar documentos e fomos vistoriados, na brasileira nada disso. O guarda lá de dentro da cabine fez um sinal com a mão e fomos em frente, nada de pedir documentos ou vistoriar bagagem, estávamos no Brasil”.
Passaram por Itaqui, São Borja e foram para Santo Ângelo, terra missioneira onde aconteceram as famosas Reduções Jesuitas e de onde também um dia partiu a Coluna Prestes, no Rio Grande do Sul. “Comemos finalmente um arroz com feijão e recarregamos as baterias para a arrancada até Itapira”, explica.
De Santo Ângelo rodaram mais 700 quilômetros até Palmeira-PR e, no outro dia, até Itapira, mais 640 quilômetros. “Estávamos em casa após 25 dias de viagem e 9.000 quilômetros percorridos”, diz Recchia.
Acostumado com a língua falada por quase um mês, Recchia arrisca, em portunhol, um elogio a tudo que viu. “La magia del lugares se quedan en la alma”. Para depois voltar ao bom e velho português. “A beleza de todos os lugares pelos quais passamos está agora bem aconchegada em nossa alma e para sempre virão conosco. Foi bom partir e foi bom voltar”.
Julio e Fernando no Grande salar no Paso Jama
Julio posando de aventureiro
Gelo na pista em pleno deserto,vai entender.
Imensidao e retas interminaveis
Posto bem primitivo em Susques
Travessia cordilheira pelo Paso Los Libertadores
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