O mês de outubro traz à reflexão os eventos da Reforma Protestante. A data referencial é a de 31 de outubro de 1517, quando o monge agostianiano Martim Luthero teria afixado suas ‘noventa e cinco testes’ às portas da catedral de Wittemberg na Alemanha. O gesto de Martim não foi nenhum desrespeito ou um ato de provocação ou soberba como erroneamente alguns afirmam. Antes, Martim Luthero simplesmente usou com eficiência um meio de comunicação e divulgação próprios à época. Às vésperas do dia de Todos os Santos, uma data religiosa muito concorrida, com enorme afluxo de pessoas de todas as classes sociais, o jovem sacerdote e monge quis convidar para um tempo de conversas e debates as ideias mais inquietantes sobre fé e vida nos seus dias. As campanhas de João Tetzel, um frade dominicano, que percorria cidades e aldeias numa cruzada pela venda de indulgências e um bom lugar no céu roubava a paz e desassossegava a vida pacata de muitas paróquias e, ao mesmo tempo, angustiava e atormentava as almas confusas e cheias de escrúpulos e temores sem fundamento de pobres e ignorantes que não possuíam recursos para assegurar a sua salvação. Mas, como a ignorância das “coisas de Deus” não era exatamente uma prerrogativa dos pobres, muitos da burguesia, aristocracia e até da nobreza, cediam as impressionantes imagens do inferno produzidas pela desesperançada pregação de Tetzel. Aqui se pode comprovar como uma religião sem as Escrituras, sem a pregação genuína das Escrituras, pode ser uma fonte cruel de escravidão e tormentos psíquicos e espirituais. Para facilitar o debate Martim Luthero adiantou os pontos que desejava abordar e discutir com a publicação de suas noventa e cinco teses, que aliás, também teriam sido gentilmente encaminhadas para o bispo daquela diocese. Os desdobramentos desde esses dias são evidentes, a incapacidade de diálogo, a troca mútua de acusações, as perseguições, a ruptura da Igreja (nunca desejada por Luthero), a recusa do Papa em acatar as contribuições dos Reformadores (coisa que esporadicamente aconteceu pontualmente mais tarde no Concílio Vaticano II e em alguma ou outra manifestação dos Papas de 1958 para cá). Mas, como insinua o título em latim dessa pastoral, quantas teses mais seriam necessárias para os dias de hoje? É certo que a Igreja necessita de reforma. A Igreja Evangélica carece de reforma tão urgentemente como poderíamos supor em relação a Igreja Católica. A Igreja Evangélica no mundo inteiro, em todas as tradições, reformada, arminiana, pentecostal e as ondas carismáticas, vivem dias difíceis. A fidelidade às Escrituras tem sido substituída pelo pragmatismo. O importante é aquilo que dá certo, que atrai as multidões, que fideliza a clientela, que atende aos gostos e às necessidades carnais dos crentes. Por isso, o espaço que antes honrava a pregação expositiva deu lugar ao ‘talk show’ (inclusive com Satanás em algumas agremiações), apresentações infindáveis de testemunhos e depoimentos que mormente exaltam o carisma do líder ou a campanha realizada. A Palavra também perdeu espaço para o “louvorzão”, para o show gospel e suas ministrações rasas, cheias de clichês, psicologismos e expressões culturais mundanas. A alegria como qualidade do coração regenerado e abastecido das Escrituras, bem como a alma jubilosa pela exposição da verdade no sermão, foi substituída por histeria, por emocionalismo profissional e intencionalmente produzidos por toda sorte de recursos audiovisuais. A contrição do coração, a teologia da cruz, o chamado à santidade, foram trocados por “você merece ser feliz”, “não aceite o sofrimento”, “seja um vitorioso” (geralmente se trata de vida financeira). As Igrejas Evangélicas têm flertado perigosamente com os pecados de Tetzel e suas indulgências. Vendem bênçãos em produtos ungidos, de sabonete e lenços a miniaturas de cajados, relíquias de ‘santos vivos’, isto é, objetos de homens tido por especiais, até pirâmides financeiras. O mercado da fé está em franco crescimento e não conhece crises, antes, se alimenta das crises alheias. Precisamos de novas teses que desafiem a relação da igreja, seus líderes e a política (com alguns políticos em especial e como bancada representativa inclusive). Cristo denominou seus discípulos como ovelhas e aproveitando-se disso, não poucos pastores transformaram suas comunidades em currais eleitorais, e como escrevi uma vez, o mais asqueroso atentado contra a democracia é o voto de cajado, aquele em que o fiel é constrangido a votar no candidato do pastor, quando ele mesmo não o é. De quantas teses mais precisaríamos? Não sei ao certo, mas quinhentos anos depois, faríamos bem se aceitássemos o gentil convite de Luthero para trocar ideias. Aceita?
Reverendo Luiz Fernando é Ministro Protestante na Igreja Presbiteriana Central de Itapira
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