O deserto é uma imagem muito forte na Bíblia e repleta de significados espirituais. Mais do que um simples lugar geográfico, o deserto é também um lugar teológico, palco de grandes atos redentores de Deus, lugar da prova do povo de Israel e também do Filho de Deus. Para Israel significou ainda o lugar da eleição. Abrão foi convidado a deixar a casa de sua parentela e andou errático deserto a dentro para fazer uma desconcertante experiência com Deus. Sob o céu estrelado da escura noite em meio ao ensurdecedor silêncio do deserto, Abraão acolheu as cláusulas do pacto e recebeu as promessas da bênção. Mais tarde, cada um dos patriarcas foi despertado para a relação com Iaweh na solidão do deserto. Moisés, o grande estadista-libertador dos hebreus, teve o seu mais significativo encontro com Deus no alto da montanha, em meio a desolação do deserto, na sarça que ardendo em fogo não se consumia. Neste local inóspito e marcado pela presença da morte na sequidão do ermo, Moisés acolheu a sua vocação e como que nasceu de novo, agora para a missão. Mais tarde, esse mesmo Moisés, agora portador da vontade do Eterno para o povo libertado, no deserto recebe e transmite as Tábuas dos Mandamentos da lei e celebra a Aliança entre Deus e o povo que Ele amou. Dando um grande salto na história bíblica, o Espírito Santo conduz Jesus ao deserto (Mt 4), como nosso representante, para ser tentado pelo diabo. E nessa condição de nosso representante, ele passa na prova das tentações e, por assim dizer, encobre, anula as falhas de Adão e de Israel, que submetidos à prova, caíram em pecado e desobedeceram. O deserto, então, por mais desoladora que seja à nossa imaginação, é um lugar desejável para a igreja passar certos períodos de sua caminhada e isso por vários motivos. As nossas comunidades se tornaram muito barulhentas, freneticamente barulhentas. O homem fala o tempo todo. Vivemos uma crise verborrágica na igreja, todo mundo tem sempre alguma coisa a dizer, um recado a ser dado, um pedido, uma explicação. Os instrumentos estão cada vez mais altos e o louvor, com toda sofisticação tecnológica, cada vez mais poluído com luzes, efeitos luminosos e em alguns casos, videoclipes interativos e até gelo seco, para dar um climão. Entre os louvores e durante os mesmos, tem sempre alguém falando, falando. Não conseguimos mais orar e alguns nem mesmo pregar sem fundo musical. Momentos de silêncio, de introspecção e contemplação são quase inexistentes e, na verdade, não são suportáveis ou mesmo desejáveis. Toda essa realidade do barulho tornou as nossas liturgias aceleradas, afetadas, desconectadas da realidade e numa palavra, doentes. Estamos doentes de tanto barulho e de tanta agitação, estamos cada vez mais fora de nós mesmos na adoração e vivemos numa verdadeira diáspora (dispersão) espiritual. O que entendemos está em profunda desconexão com o que somos e o que sentimos, porque o barulho, a agitação, não nos permitem captar a realidade do mistério de Deus. Precisamos urgentemente de experimentar a brisa suave de Elias e assim ouvir o murmúrio do Espírito Santo quando nos reunimos para adorar. De alguma maneira precisamos voltar ao deserto para sermos tratados por Deus desse mal do barulho, dessa enfermidade da agitação que dispersa, dessa síndrome de não estar por inteiro quando Deus deseja a nossa atenção. Quais os benefícios do deserto? O primeiro e imediato benefício do deserto é que o silêncio exterior pode levar-nos a descobrir o desarranjo e a fragmentação interior que existe em nosso coração. Seremos capazes de ouvir o vozerio desvairado de nossas paixões desordenadas dentro de nós. Esse diagnóstico é fundamental para que haja a pacificação e a bênção da integridade espiritual. O segundo benefício é que o silêncio exterior nos leva aos poucos a dominar o barulho interior e, assim, nos proporciona refinar as vozes até que voltemos a ouvir o gemido do Espírito dentro do nosso coração. O terceiro benefício é o da escuta de Deus. Se para Deus no princípio está a Palavra, para o homem, no princípio, está a escuta. O silêncio pode proporcionar-nos uma leitura menos acelerada e menos utilitarista das Escrituras. Poderemos ler a Bíblia com proveito, sem pressa, sem conclusões muito óbvias e imediatistas, poderemos ruminar a Palavra, meditar nela, em sua perfeição, em sua sabedoria, em sua pureza, em sua beleza e sobretudo, é claro, em sua autoridade sobre as nossas vidas. O quarto benefício do deserto é o desenvolvimento da oração como uma resposta à palavra. Uma oração dialógica, que nos permita uma relação de maior intimidade com o Senhor. O deserto nos possibilita orar com Bíblia e a partir dela, cantá-la, inclusive. O quinto benefício é o da dependência. A experiência da solidão é, de alguma maneira, a experiência do abandono e da precarização radical de nossas humanas seguranças. O deserto nos ensina a confiar e a depender com mais consciência e intencionalidade da graça de Deus e a desconfiar e desprezar qualquer senso de suficiência pessoal. O sexto benefício real é o desejo de cultivar relacionamentos que sejam significativos, íntimos, pactuados e marcados com amor. O deserto provoca em nós o desejo de cultivar uma comunidade mais íntegra e mais fraternal. E sétimo, porém, não o último, apenas por falta de espaço, o deserto nos dá a consciência que ali não é a nossa morada definitiva, não é o nosso habitat natural, mas um lugar de experiências e de cura, um tempo que antecede a missão. O deserto desenvolve em nós o desejo de proclamação, de anúncio, de serviço e de fazer o Reino acontecer. Que as nossas comunidades não se distraiam tanto com as luzes e os sons da cidade que já não vejam a glória do Eterno e já não ouçam com clareza a voz de Deus. O deserto será sempre uma necessidade.
Reverendo Luiz Fernando é pastor na Igreja Presbiteriana Central de Itapira
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