O ano mal começou e lá estávamos - eu e amigos - comemorando o sexagésimo aniversário do compadre Ezequiel. Uns já tinham colocado o pé nessa canoa, outros, como eu, daqui um tantinho. Parafraseando o amigo Patrão eu perguntaria: o que nós vamos fazer com o restinho desses próximos cinquenta anos? E responderia: naquilo que depender da turma, dando boas gargalhadas, como fazemos a mais de quarenta anos, compartilhados. Dizem os especialistas: “amigos e bom humor são essenciais para o bem envelhecer”. Quesito até agora cumprido. Com os amigos o bom humor impera, seja por conta da conversa séria ou jogada fora ou das piadas ou das “armações”.
Ezequiel é o “cabôco” mais regulado que eu conheço. Jamais come qualquer coisa sem uma discreta e minuciosa pesquisa. Gosta das coisas arrumadas nos seus mínimos detalhes. Nunca mete a mão em cumbuca. Usa frases de efeito como “deixa o burro que pule” para referir-se a alguma encrenca que não se deve intervir; “essa é para a diretoria” quando a melhor parte do churrasco chega ao ponto depois de ser cuidadosamente elaborada por ele; “malandro não estrila, anota na caderneta”, quando alguma armação é contra ele, prometendo revanche.
Eu poderia contar mil histórias inesquecíveis onde Ezequiel teve participação especial, ora como mentor ora como cúmplice de primeira hora. Estimulado, no entanto, pela recente declaração do Papa Francisco quando disse que “a teoria do Big Bang não se opõe a ideia de um criador divino, pois ela exige um criador, assim como a evolução exige que antes os seres tenham sido criados” me fez rememorar uma noite de sábado dos anos setenta, na Fazenda São José, quando eu e o Ezequiel participamos da organização de um encontro de jovens católicos. Coube a mim uma palestra com o tema criação do mundo a partir dos olhos da ciência. Comecei pelo Big Bang, passei pela Teoria da Evolução e conclui dizendo: “a ação de Deus não deveria ser medida a partir das convenções estabelecidas, mas de todo o potencial oferecido mesmo que destinado para a mais mísera partícula semeada no Universo”. Como a ideia básica da palestra era conhecida e consentida pelo padre Veríssimo, então pároco da Igreja de Santo Antonio, não vi necessidade de esmiuçá-la aos demais companheiros, antecipadamente. Deu bololô!
No final dos trabalhos daquela noite, os organizadores se reuniram para avaliar o andamento da programação. No quase tribunal, tipo santa inquisição, fui o prato principal. Fui acusado de negar os ensinamentos bíblicos e valorizar a ciência. Um dos mais severos críticos ao conteúdo da palestra foi justamente o homenageado neste texto: Ezequiel Barel. Como criacionista convicto, naquela noite, poderia ter proposto a minha excomunhão e contaria com a aprovação unânime dos demais organizadores, menos o meu voto, evidentemente.
Ressuscitei essa história que é sensacional para referendar a construção sólida dos laços de amizade. Os verdadeiros amigos podem ser cúmplices em todas as ações e armações possíveis, não necessariamente nas ideologias, nas crenças, nas torcidas ou qualquer outra preferência pessoal, mas jamais no campo do pensamento, este que nos faz diferentes, uns dos outros, e autônomos por natureza. A amizade de iguais normalmente é fictícia. A amizade na adversidade, certamente, verdadeira e inquebrantável.
Por tudo isso, eu manifesto orgulho dos amigos que tenho em décadas a fio. Em especial, deste Ezequiel, um cidadão que admiro, faz tempo, pela serenidade, honradez, dinamismo, liderança, alegria e, também, pelas armações e teimosia.
João, Nivaldo, Nino, Bras, Silas, Ezequiel, Marylton e Toninho.
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