E no vazio da manhã alaranjada, o homem que não usava meia resolveu por fim matar o relógio que não mais ditava as horas.
Ah! – suspirou a velha máquina. Depois de anos de fidelidade resolveu dar cabo da sua melhor sobra.
O homem que não usava meia, pigarreou, sensibilizado, sussurrou:
– Meu querido, acho que estás tão velho, que bem mereces aposentadoria do fundo de uma gaveta.
O alquebrado relógio que, ao contrário dos demais, fazia “Tac... tic”, defendeu-se:
– Ao invés do fundo de uma gaveta, não seria mais humano levar-me pelo menos no bolso da camiseta?
Um pouco contrafeito, o homem sem meia, disse conciliador:
– Como? As camisetas já não usam bolsos, ou melhor; ainda verás o dia em que terão. Sabes como é, tendo dita a moda.
O reumático marcador de horas, de cuja corrente já tremulava, insistiu:
– Por acaso, alguma vez, nos 100 anos que te servi, deixei de orientar-lhe para as obrigações de horas exatas?
Já mais nervoso, a meia do sapato que não usava homem, disse mais áspero:
– Cem anos; cem anos é muita prisão, se você atrasasse meia hora por dia, estaria morto e feliz. Por quê? Por que sempre exato?
– O meu dever e orgulho sempre foi esse, nunca atrasar um segundo sequer, eis que já me é meritório, uma homenagem.
O sapato do homem que usava meia irritou:
– Isso agora, isso ontem, isso amanhã, ora bolas, és chato... Chato e manso, morre já.
Assim dito, assim foi feito e no vazio da manhã alaranjada, a meia do homem que usava sapato atirou três vezes no velho relógio que, ao contrario dos demais, fazia – Tac... tic, Tac... Tic, tac... tic.
O texto acima não é da minha lavra. Foi escrito em abril de 1973 por um itapirense que é escritor, ator, autor e diretor de peças teatrais. Um humorista de primeira linha. Na época ele assinava seus textos com um singelo L. M., de Luiz Martinho. O Lilo ou Luizinho para os íntimos. O Luiz Martinho Stringuetti na certidão de nascimento. Um artista, eu diria, a muito, adormecido. Adormecido além da conta.
A obra de um artista se revela com o tempo. Ela pode ser vista, ouvida, lida ou interpretada em qualquer época. Quarenta anos depois, “O Homem que não usava meia” parece ter saído ontem do forno.
Bom seria que o relógio da meia que não usava sapato, guardado no fundo da gaveta, voltasse para ditar as horas, o Tac... tic, a irreverência, o pensamento...