O ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal (STF), nesta segunda-feira, 22, fez mais do que dar o quinto voto pela condenação por formação de quadrilha do ex-ministro José Dirceu e à cúpula dos mensaleiros petistas. Propiciou a redenção do povo brasileiro.
O Portal Cidade de Itapira publica abaixo trechos do voto do Ministro.
“Em mais de 44 anos de atuação na área jurídica, primeiramente como membro do Ministério Público paulista e, depois, como Juiz do Supremo Tribunal Federal, nunca presenciei caso em que o delito de quadrilha se apresentasse tão nitidamente caracterizado em todos os seus elementos constitutivos, como sucede no processo ora em julgamento.
Na realidade, Senhor Presidente, tenho por inteiramente comprovada a acusação penal fundada na imputação, aos réus, do crime de quadrilha, por entender configurados todos os elementos e requisitos que lhe compõem a estrutura típica
Formou-se, na cúpula do poder, à margem da lei e do Direito e ao arrepio dos bons costumes administrativos, um estranho e pernicioso sodalício constituído de altos dirigentes governamentais e partidários, unidos por um perverso e comum desígnio, por um vínculo associativo estável que buscava conferir operacionalidade, exequibilidade e eficácia ao objetivo espúrio por eles estabelecido: cometer crimes, qualquer crime, agindo, nos subterrâneos do poder, como conspiradores à sombra do Estado, para, em assim procedendo,
vulnerar, transgredir e lesionar a paz pública, que representa, em sua dimensão concreta, enquanto expressão da tranquilidade da ordem e da segurança geral e coletiva, o bem jurídico posto sob a égide e a proteção das leis e da autoridade do Estado
A isso, Senhor Presidente, a essa sociedade de delinquentes, a essa “societas delinquentium”, o direito penal brasileiro dá um nome: o de quadrilha ou bando.
(...) o conceito de paz pública remete à ideia de “tranquillitas ordinis”, vale dizer, à noção de sentimento geral de tranquilidade e de segurança das pessoas, sentimento esse que lhes permite um convívio social harmonioso, pois o crime de quadrilha constitui, pela só existência de sua formação, um estado de “agressão permanente contra a sociedade civil”, para usar uma feliz expressão de Heleno Cláudio Fragoso.
Na realidade, o sentimento de tranquilidade social e de segurança das pessoas e da própria coletividade, de um lado, e a preservação da integridade do convívio social harmonioso, de outro, representam valores juridicamente protegidos pela legislação penal no ponto em que esta pune o crime de formação de quadrilha, notadamente quando o grupo de delinquentes se associa com outros malfeitores no mais alto nível de poder para a prática de crimes com o
propósito último de dominar e de controlar, por métodos inconstitucionais, porque lesivos aos princípios da legalidade, da moralidade e da separação de poderes, a própria atuação do Parlamento brasileiro.
Nada se mostra mais lesivo aos valores que informam a ordem democrática e republicana e, por consequência, a própria integridade da paz pública, do que a presença, na condução do Estado e de agremiações políticas, de altos dirigentes governamentais e partidários integrantes de quadrilha formada e constituída para corromper o Poder e submeter, à vontade hegemônica do Poder Executivo e de determinados grupos nele encastelados, a direção do Estado, ainda que mediante prática de crimes os mais diversos.
Nada mais ofensivo e transgressor da paz pública do que a formação de quadrilha no núcleo mais íntimo e elevado de um dos Poderes da República com o objetivo de obter, mediante perpetração de outros crimes, o domínio do aparelho de Estado e a submissão inconstitucional do Parlamento aos desígnios criminosos de um grupo que desejava controlar o poder, quaisquer que fossem os meios utilizados, ainda que ofensivos à legislação criminal do Estado brasileiro.
O que vejo neste processo, Senhor Presidente, emergindo da prova nele produzida contra os ora acusados, são homens que desconhecem a República, que ultrajaram as suas instituições e que, atraídos por uma perversa vocação para o controle criminoso do poder, vilipendiaram os signos do Estado democrático de Direito e desonraram, com os seus gestos ilícitos e ações marginais, a ideia mesma que anima o espírito republicano pulsante no texto de nossa
Constituição.
Mais do que práticas criminosas, por si profundamente reprováveis, identifico, no comportamento desses réus, notadamente dos que exerceram parcela de autoridade do Estado, grave atentado às instituições do Estado de Direito, à ordem democrática que lhe dá suporte legitimador e aos princípios estruturantes da República.
Este processo revela um dos episódios mais vergonhosos da história política de nosso País, pois os elementos probatórios que foram produzidos pelo Ministério Público expõem aos olhos de uma Nação estarrecida, perplexa e envergonhada um grupo de delinquentes que degradou a atividade política, transformando-a em plataforma de ações criminosas.
A acusação criminal contra esses antigos dirigentes estatais e partidários, cuja atuação se deu no contexto de um esquema delituoso estruturado nos subterrâneos do Poder e que contou com o auxílio operacional de agentes financeiros e publicitários, demonstra que a formação de quadrilha constituiu, no caso ora em julgamento, um poderoso instrumento viabilizador da prática de crimes contra a administração pública, contra o sistema financeiro nacional, contra a estabilidade do sistema monetário e contra a paz pública.
Torna-se importante enfatizar que não se está a incriminar a atividade política, mas, isso sim, a punir aqueles que não se mostraram capazes de exercê-la com honestidade, integridade e elevado interesse público, preferindo, ao contrário, longe de atuar com dignidade, transgredir as leis penais de nosso País, com o objetivo espúrio de conseguir vantagens indevidas e de controlar, de maneira absolutamente ilegítima e criminosa, o próprio funcionamento do
aparelho de Estado.
O reconhecimento desse cenário, que encontra integral apoio em prova validamente produzida neste processo penal, tal como bem o demonstrou o eminente Relator, põe em evidência, de maneira muita clara, a ofensa que esses réus cometeram contra a paz pública, o que justifica o enquadramento de sua conduta no art. 288 do Código Penal, pois se mostra evidente, a partir dos elementos que compõem esse tipo penal, a prática, por tais acusados, do crime de
quadrilha.
Acentue-se, portanto, este dado que me parece fundamental: os fins não justificam quaisquer meios, quando estes se apresentam em conflito ostensivo com a Constituição e as leis da República.
A conquista e a preservação temporária do poder, em qualquer formação social regida por padrões democráticos, embora constituam objetivos politicamente legítimos, não autorizam quem quer que seja, mesmo quem detenha a direção do Estado, ainda que invocando Expressiva votação eleitoral em determinado momento histórico, independentemente de sua posição no espectro ideológico, a utilizar meios criminosos ou expedientes juridicamente
marginais, delirantes da ordem jurídica e repudiados pela legislação criminal do País e pelo sentimento de decência que deve sempre prevalecer no trato da coisa pública.
Os réus deste processo, agora sendo julgados pela prática do crime de quadrilha, devem ser punidos como delinquentes que, a pretexto de exercer a atividade política, desta se desviaram, vindo a conspurcá-la mediante ações criminosas e ignóbeis com que ultrajaram os padrões éticos e jurídicos que devem conformar e inspirar aqueles que pretendem verdadeiramente atuar na cena política.
Estamos a condenar, portanto, não atores políticos, mas, sim, protagonistas de sórdidas tramas criminosas. Em uma palavra: condenam-se, aqui e agora, não atores ou dirigentes políticos, mas, sim, autores de crimes...
Votações eleitorais, Senhor Presidente, embora politicamente significativas como meio legítimo de conquista do poder no contexto de um Estado fundado em bases democráticas, não se qualificam nem constituem causas de extinção da punibilidade, pois delinquentes, ainda que ungidos por eleição popular, não se subtraem ao alcance e ao império das leis da República.
Afinal, nunca é demasiado reafirmá-lo, a ideia de República traduz um valor essencial, exprime um dogma fundamental: o do primado da igualdade de todos perante as leis do Estado.
Ninguém, absolutamente ninguém, tem legitimidade para transgredir e vilipendiar as leis e a Constituição de nosso País. Ninguém, absolutamente ninguém, está acima da autoridade do ordenamento jurídico do Estado.
Eis, aí, Senhor Presidente, a verdadeira natureza e perfil dos réus deste processo, que, em dado momento histórico de nosso processo político, integraram uma quadrilha que ambicionou tomar o poder, a Constituição e as leis da República em suas próprias mãos.