Conto de André Sant'anna publicado na FOLHA DE SÃO PAULO em 13/07/2014.
Ela amava o João Gilberto e pensava que um povo capaz de fazer aquela música devia ser o povo mais maravilhoso do mundo. Ela tinha assistido "Bye Bye Brasil" no cinema umas cinco vezes. Ela ficou completamente entusiasmada com o "Macunaíma", do Antunes Filho, no teatro, lá na Alemanha. Ela não ligava para futebol, até perceber que o futebol era a maior expressão cultural do Brasil. E ela perguntou para o pai sobre o futebol brasileiro e o pai dela disse que o futebol brasileiro era um negócio mágico, mítico, poesia, e falou sobre os lançamentos em profundidade do Gérson para Pelé e Jairzinho e sobre o Clodoaldo driblando vários italianos sem tocar o pé na bola, na final de 70, e um tal quadrado mágico que ele tinha visto, ao vivo, na Espanha, em 1982, o Toninho Cerezo, o Falcão, o Sócrates e o Zico.
Ela não entendia nada dessas coisas, mas ela sentia uma beleza muito rara naquelas histórias que o pai dela contava. E quando passava um jogo do Brasil na televisão, lá na Alemanha, ela assistia. Ela achava incrível como os brasileiros eram tão diferentes uns dos outros e tão iguais uns aos outros, a tal mistura de raças. Havia um louro muito louro, muito claro, e um negro muito negro, preto, e, entre o louro e o preto, havia todas as tonalidades de cor, branco, bege, marrom, negro, e ela não aguentou mais viver longe do Brasil, aprendeu português e voou para se misturar no Brasil.
E ela conheceu o Brasil todo e amou o Brasil, essas alemãs valentes, de mochila nas costas. Ela conheceu umas aldeias de pescadores que assavam uns peixes para ela, numas praias desertas, à luz da lua, os caiçaras tocando viola, rabeca e pandeiro, as mulheres cantando e batendo palmas. Ela cantou e bateu palmas vários dias seguidos, na Bahia, no Pelourinho daquela época que já faz uns trinta anos, e aprendeu capoeira e bebeu cachaça pelo gargalo e nem ficava de porre, só ficava feliz. Ela navegou pelo rio Amazonas, olhava para a floresta e parecia que a floresta respirava forte, parecia até que Deus existe. E pegou carona de caminhão e ouviu histórias incríveis do Brasil. Ela viveu numa aldeia de índios e dançou com os índios e nadou nua naqueles rios, naquelas cachoeiras, com as crianças da aldeia, e chegou em São Paulo com o cabelo louro cortado que nem o dos índios, cheia de colares e pulseiras de miçangas e um brinco com três penas de arara, uma azul, uma amarela e outra vermelha.
Ela achou a cidade de São Paulo meio feia no começo, mas depois foi descobrindo aquela imensidão, os italianos, os japoneses, os espanhóis, os libaneses, e começou a achar aquilo tudo muito louco, muito interessante, foi gostando cada vez mais daquela gente. Sentiu ternura até pelo porteiro da pensão barata onde morou, no centro da cidade, que, ao descobrir que ela era alemã, falou assim, achando que ia agradar: "Heil Hitler". Ela viveu por muitos anos no Brasil sem voltar para a Alemanha. Ela não queria saber de Alemanha.
Até que o Brasil se tornou o melhor país do mundo e o povo brasileiro se tornou o povo mais maravilhoso do mundo. Em toda parte, na televisão, ela ouvia dizer o quanto o Brasil estava ficando bom, melhor em tudo, se tornando uma potência econômica, querendo um lugar no Conselho de Segurança da ONU, um lugar na Opep, o presidente dos Estados Unidos dizendo que o presidente do Brasil era o cara, o presidente do Brasil dizendo para os brasileiros que eles poderiam ter carros incríveis, viajar de avião, e que os brasileiros deveriam consumir muito, comprar muitas coisas como batata frita, home theater e até aqueles iogurtes que ajudam as mulheres a fazer cocô.
E então tudo começou a ficar proibido e um dia, quando ela tirou a parte de cima do biquíni, na praia maravilhosa, uns brasileiros melhores do mundo fizeram um círculo em volta dela e jogaram areia nela e dois policiais melhores do mundo ordenaram que ela botasse a parte de cima do biquíni, já que no Brasil só pessoas do sexo masculino podem ir à praia sem camisa.
Depois de muitos anos, ela foi visitar os pais dela, lá na Alemanha, em Berlim, e notou que havia muita mistura de raças por lá. Árabes amando japonesas, africanas de mãos dadas com finlandeses, curdos com filhos mulatos e, no rádio, lá na Alemanha, tocava Tom Jobim, Hermeto Pascal e Itamar Assumpção que não tocava no Brasil e ela percebeu que os alemães estavam sempre sorrindo, que os rios estavam todos limpos, que as bibliotecas e centros culturais estavam repletas de crianças negras aprendendo, que os casais gays andavam pelas ruas abraçados e se beijavam e que ninguém ligava prá isso.
Na volta dela, o Brasil sediava a maior Copa do Mundo de todos os tempos e ela viu, na televisão, os jogadores alemães dançando com os índios amigos dela e vestindo a camisa do Bahia, todos sempre sorrindo, e o narrador dos jogos da televisão dizendo como os alemães eram frios, pragmáticos e como os brasileiros estavam ensinando os alemães a serem felizes.
E, na semifinal da Copa, aos 30 minutos do primeiro tempo, ela descobriu que a Alemanha era muito melhor do que o Brasil. Inclusive no futebol.