O que cabe aos arquitetos e o que aos engenheiros civis? Esta é uma questão que talvez ninguém, seja leigo ou profissional, sabe responder com clareza. Eu também não, mas arrisco fazer alguns apontamentos sem a pretensão de ser muito preciso.
Antes de tudo, é interessante lembrar que essa distinção entre as funções de arquitetos e engenheiros não existia antes do processo de industrialização ocorrido na modernidade. Mais precisamente, é em meados do XIX, quando Inglaterra e França iniciam a construção de estradas, estações ferroviárias e pavilhões que surge como profissão o engenheiro, aquele que se ocupa sobretudo com as questões de racionalização, otimização e reprodução em série de peças da construção em ferro fundido e, algum tempo depois, em aço e concreto armado. Nessa crescente divisão de trabalho o arquiteto, além de ter de saber como essas peças se articulavam com o restante do edifício, era aquele que pensava o modo como esses edifícios se inseriam na malha urbana e nos espaços públicos da cidade, bem como pensava que tipo de diálogo esses edifícios iam estabelecer com a história local. De lá pra cá, a divisão de trabalho se acentuou e, de modo geral, é usual que o senso comum opere na distinção básica, onde engenheiros decidem questões técnicas, sobre estruturas e instalações, ficando a cargo dos arquitetos o que também o senso comum chama de questões “estéticas”, de “estilo” etc.
Não é preciso muito pra perceber que, nessas divisões, ambas as profissões estão reduzidas, uma vez que cada profissional se especializa num âmbito, resolve alguns aspectos e se torna alheio aos outros. De um lado, temos arquitetos reduzidos a decoradores, que se envolvem sobremaneira em questões epidérmicas dos projetos e se distanciam da realidade da construção, ou seja, tornam-se cada vez mais capazes de projetar, mas não de construir. De outro lado estão engenheiros—os mais ligados à construção em série --, que sabem construir, mas não entendem quase nada de questões históricas e urbanas. Estes enchem as cidades de vulgaridades ecletistas sem pé nem cabeça e assim satisfazem a demanda e o gosto também vulgar dos mercados consumidores aquecidos.
Outros aspectos interessantes. Dito de modo geral, ambas as profissões se descolaram da realidade onde as obras se inserem, isto é, os profissionais desconsideram o impacto urbano que tais obras geram e não avaliam que tipo de cidade e urbanidade, a longo prazo, eles estão perpetuando (me refiro agora a obras de maior porte, como shoppings, edifícios de escritórios, condomínios habitacionais, intervenções urbanas etc). E essa ausência de responsabilidade cidadã dos profissionais da construção certamente contribui para o que vemos hoje nas metrópoles: cidades que se desenvolvem como ilhas pensadas isoladamente. Prédios e prédios sendo levantados em bairros com infraestrutura insuficiente. Condomínios fechados por muros, ligados a cidade por rodovias onde não chegam transporte público nem andam pedestres. Vazios urbanos e ocupações irregulares em áreas de risco (ao lado dos condomínios). Os centros abarrotados de carros e estacionamentos. E paro por aqui, pra não entrar em relações mais espinhosas entre déficit habitacional, especulação imobiliária e habitações populares mal construídas. E pra assistir melhor ao que digo não é preciso ir muito mais longe do que Campinas e São Paulo.
Muitas dessas questões são sociopolíticas, e alguns profissionais podem me questionar, dizendo: “isso está muito além da capacidade de atuação dos profissionais da construção”, ou então, “para as cidades mudarem é preciso uma reforma sociopolítica muito mais ampla”. A esses eu diria: tudo verdade, mas não justifica que por isso vamos seguir sem questionar minimamente os parâmetros que já nos levaram a cidades tão problemáticas. Não devemos usar o pretexto de que as mudanças são muito difíceis e grandes, para reiterar nossas posturas que se eximem de qualquer compromisso com a saúde da vida urbana. Todos nós sabemos que, mesmo atuando no famigerado mercado, ora ou outra lidamos com questões desta ordem.
Paolo Colosso é arquiteto, bacharel em Filosofia pela Unicamp e atualmente faz mestrado em Filosofia na USP. Contato no email:
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