Quis o destino que uma criança viesse ao mundo para vingar a sexta gestação de uma mãe que sabia parir, mas não estava preparada para criar. Essa criança tinha mais de um ano de vida, brincava e levava à boca tudo o que alcançava, como qualquer outra criança. Naquele dia, segundo relatos, enquanto a mãe se drogava, o bebê engoliu uma pedra de crack. Quando essa pedra caiu no estomago dela, em pouco tempo uma dose exagerada de moléculas estranhas e altamente danosas já circulava, imbatíveis, pela corrente sanguínea, passando pelo coração e pulmões e aportando no cérebro para abrir valetas em busca das conexões nervosas. Uma reação em cadeia que incendiou e bloqueou quase todas as atividades cerebrais, além de levar alguns órgãos à falência.
Quando eu comecei a pensar na ação dessa pedra no cérebro daquela criança, acabei associando com uma imagem terrível dos meus tempos de adolescente, de uma brincadeira de mau gosto que consistia em jogar sal de cozinha sobre uma lesma só para vê-la se derretendo, pouco a pouco, até virar uma gosma. É como eu imagino, na minha ignorância médica, o cérebro de alguém após uma overdose com consequências irreversíveis.
Essa criança deve ter sofrido palpitação, sudorese, cefaleia, taquicardia, hipertensão, tremor, espasmo muscular, arritmia, parada cardiorrespiratória, hipertermia, crise convulsiva, hemorragia intracraniana e mais uma porção de efeitos com nomes mais complicados... Passou por quase tudo isso em menos de um dia.
Sei que muita gente acredita em destino. Desde as que acham que nascemos com um script totalmente definido até as que enxergam nas dificuldades cotidianas testes para as devidas depurações espirituais.
Respeito os pensamentos contraditórios, mas em minha opinião a crença na predestinação mais atrapalha do que ajuda, pois atendem aos interesses do descompromisso social e da manutenção do status quo. É fato que não se assiste casos dessa natureza, na frequência que se vê por aqui, nos países que descobriram a valorização da vida humana e construíram o sentimento coletivo. Basta uma rápida pesquisa para descobrir que além das overdoses que matam pessoas, mais velhas, aos montes, crianças que engolem acidentalmente o crack e outras drogas povoam o noticiário cibernético.
Assim como a duplicação de uma rodovia ou construção de uma simples rotária num cruzamento perigoso evita acidentes e mortes, o poder público e a sociedade podem intervir para evitar que crianças morram ou vítimas de desgraças semelhantes. Esse é o ponto que merece a maior atenção da sociedade.
O poder público pode se apresentar mais presente levantando, diagnosticando e oferecendo terapias. A sociedade pode ser mais compreensiva com os processos de redistribuição de renda, mais combativas aos consumidores sociais de drogas, não necessariamente gente pobre, que mantém a indústria do tráfico, mais condenadora dos agentes que aceitam subornos de traficantes e mais colaboradora nos projetos de reeducação e recomposição da dignidade humana.
O destino está em nossas próprias mãos, pois.
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