Tem certas passagens, devidamente arquivadas em minha memória, tão determinadas, que se a tecnologia oferecer, em tempo, um projetor capaz de captar imagens do meu pensamento, elas poderão ser assistidas, provavelmente, em cinemascope. Uma delas, por exemplo, registra a tarde do dia 31 de março de 1964. Eu brincava com meu amigo Ênio, no alpendre de mosaicos vermelhos que separava o pequeno portão verde, sem cadeado na linha da rua, da porta de entrada, com janelinha, da minha casa. Sentados na escada de dois lances, jogávamos corte-marretão com bolinhas de gude. Minha mãe ligou o velho rádio a válvulas para ouvir a radionovela habitual, mas o programa era outro, tinha a voz de um homem que noticiava. Desconfiei que não fosse boa coisa. O tom denunciava. Virei para o meu amigo Ênio e disse-lhe amedrontado: “escuta o rádio. O que está acontecendo?” Ênio, menos preocupado, respondeu: “meu pai falou que é revolução!” Arrepiei: “é guerra?” Naquela época eu morria de medo de guerra e do fim do mundo. Ênio me acalmou: “não é guerra não, é revolução!”. Mais tranquilo, expressei: “se não é guerra, tá bom!”. Como nenhum dos dois sabia o que era revolução, continuamos o nosso jogo.
Itapira, assim como a maioria das cidades interioranas, vivia à margem dos grandes acontecimentos. Passei pelo menos cinco anos ouvindo que aquela revolução tinha evitado o comunismo no Brasil, livrando as criançinhas das garras daqueles facínoras, até descobrir que se tratava de um golpe militar apoiado pela fina flor da sociedade brasileira e pelas não tão finas assim.
O Brasil tinha naquela época inúmeros problemas, quase tão antigos quanto o nosso descobrimento. A saúde da maioria da população era cuidada por benzedores e curandeiros ou por instituições religiosas e voluntariosas que faziam o que podiam. A saúde pública, como vemos hoje, era quase inexistente. A morte era presença constante nas famílias. A educação pública até que se apresentava com qualidade, mas não atendia a população pobre ou remediada que representava mais de noventa por cento da população. Faltava moradia, saneamento, cultura... Sobrava corrupção. Enfim, nada que fosse inédito e merecesse uma “revolução de gabinete intempestiva”. Oferecia, com certeza, razões aos montes para uma revolução socialista. Vivíamos, ainda, em plena guerra fria e o exemplo de Cuba era perto e contemporâneo. Discursos não faltavam nesse sentido. Mas eram só discursos!
Medo do comunismo? Desculpa mais do que esfarrapada para o tal golpe. Para levar um país ao socialismo, mesmo naquelas condições de temperatura e pressão, precisava-se, no mínimo, da maioria favorável das forças armadas, do desejo majoritário da população e, fundamentalmente, da disposição de luta, armada, certamente. Não é difícil depreender que este país nunca teve e nunca terá apego à ideologia comunista ou coisa parecida, por mais branda que ela seja apresentada. Os discursos esquerdistas tentavam semear a ideia, os centristas e direitistas, incutiam o medo. Um medo que calava. Para superar um medo de algo que jamais se configuraria, nos sujeitamos ao medo por longos vinte e um anos, que além do atraso no desenvolvimento democrático, social e cultural, levou parte da nossa incipiente cidadania. Mas ainda assim não aprendemos totalmente. Assistimos processos conspiratórios semelhantes nas eleições em que Lula participou e não foi eleito, nas privatizações de FHC e dos perdedores inconformados com as escolhas legítimas da população nos processos eleitorais, em todas as esferas. Na semana passada, uma tentativa em reeditar a Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi frustrada graças à nossa evolução política. Já não era sem tempo.
Não devemos, no entanto, abaixar a guarda. Apoiadores do golpe e parte significativa da imprensa brasileira, ainda tentam moldar a história para diminuir as responsabilidades dos golpistas, como se houvesse algo que justificasse as torturas, os assassinatos, a supressão da liberdade de expressão e de organização, a censura... Xô ditadura!
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