O livro de Jó é um dos mais lindos, impressionantes, intrigantes e ricos de todo o Antigo Testamento, sem falar também que é uma pérola da literatura. Como todo livro do gênero sapiencial, o livro de Jó possui uma mensagem de prática aplicação a situações concretas da vida, ou nos fornece uma chave de interpretação para eventos aparentemente desconexos de nossa existência. No caso de Jó, além destes dois fatores, a narrativa nos apresenta uma sólida teologia acerca da soberania de Deus sobre o mundo (visível e invisível), e todos os demais atributos de Deus, quer ‘comunicáveis ou incomunicáveis’. Há também, como objeto de nossa reflexão nesta pastoral, uma lição importante sobre vida espiritual sadia e madura. A pergunta-afirmação de Satanás possui fundamento. É real e possível gratidão e fidelidade a Deus embasada apenas em benefícios recebidos, em graças alcançadas, em favores desfrutados. Satanás questiona quanto o fundamento da fidelidade de Jó. Afinal de contas, Jó não tem do que reclamar se comparado à vida de outros homens ele é um felizardo. Rico, sábio, afamado, com uma grande família, nenhuma peste ou doença tem se aproximado de sua tenda, não possui inimigos, pelo menos não suficientemente capazes de fazê-lo perder uma noite de sono. Jó é um abençoado. Satanás “desafia” esta fidelidade quanto a sinceridade de seu coração, como que propondo um teste para Deus. O Senhor permite uma limitada, porém ampla atuação de Satanás na vida de Jó: bens, afetos, familiares, casamento, amigos, fama, admiração. Tudo vai saindo de sua vida de modo inesperado, e catastrófico, Jó perde o controle de sua história, não, porém, a sua convicção de que Deus continua soberano. Por fim, também a sua integridade física e psíquica começa a sofrer os ataques do diabo e começa a experimentar uma espécie de depressão. Jó é tentado a apostatar, a blasfemar, a crer numa teologia deformada quanto ao caráter santo, justo e amoroso de Deus. De fato, se Satanás estivesse certo, já não havia razões plausíveis para que continuasse fiel, grato e obediente. Incrivelmente no início de sua desventura, vislumbramos um pouco da índole de Jó: “Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor tomou; bendito seja o nome do Senhor.” (Jó 1.21). Infelizmente esta gratidão por amor de si mesmo, mais do que por amor a Deus também se estende sobre as nossas relações, confira no Evangelho Lucas 6.32. Muitos cultivam certa relação pacífica, de entendimento e amizade na mesma medida em que são beneficiados em algo. Entretanto, quando se vêm frustrados ou contrariados, se enraivecem e se tornam inimigos letais. Com Deus a conduta em nada se difere. Não suportam os reveses da vida. Não conseguem administrar perdas e dores. Como crianças mimadas culpam a Deus por suas falaciosas esperanças não correspondidas, tem uma deturpada imagem de um ‘deus’ mágico e serviçal. Deus procura adoradores que o adorem em espírito e verdade e não bajuladores. Isto significa que Deus que ser adorado, amado, servido, por quem o busca por aquilo que Ele é, pelas excelências de seu caráter, pela beleza de sua santidade. Qualquer outra motivação, ainda que seja a gratidão, nunca será suficiente ou plena de verdade nos relacionarmos com Deus. O benfeitor deve ser amado mais do que o bem feito. O doador deve ser mais desejado que o dom. Peçamos a Deus para que Ele nos tire da criancice espiritual, que ele nos dê de Jó mais que sua paciência, nos conceda também a pureza de suas intenções e fidelidade no tocante a Deus. Peçamos ao Senhor que saibamos amá-lo por sua santidade indefectível mais do que pelo seu poder invencível. Digamos a ele com Calvino: “Ofereço Senhor, meu coração pronto e sinceramente.”
Reverendo Luiz Fernando é Ministro da Palavra na Igreja Presbiteriana Central de Itapira
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