George Orwell escreveu em 1948 a história de uma sociedade futurista de um grande bloco de países chamado Oceania, onde imperava uma democracia disfarçada. Refiro-me ao romance “1984”, cujo tema principal é a transformação da realidade.
Os nossos veneráveis vereadores não se cansam de usar a palavra democracia. Jactanciam-se, costumeiramente, que hoje, em Itapira, o povo pode falar, criticar, exigir, denunciar... Exala democracia pelas ventas. Isso é muito bom! Estamos no compasso brasileiro.
Lamentavelmente, a democracia sul-americana, como bem sabemos, é frágil. Ao menor deslize podemos por tudo a perder. Nesta terça-feira, por exemplo, vivi uma noite de horror. Lembrei-me de 1984. Da ficção de Orwell e da real frustração pela derrocada das “Diretas Já!”.
Para quem não está lembrado ou não estudou a matéria, o Brasil vivia sob o manto da ditadura militar instalada em 1964, com controle da liberdade de expressão e organização, com torturas e assassinatos dos contrariantes. Com o regime exaurido pelas ações resistentes, em 1984 organizou-se a maior manifestação civil que este país tinha visto, com comícios gigantescos de norte a sul e leste a oeste: as “Diretas Já!”. A proposta de emenda constitucional, que pedia eleições diretas para a presidência da república, foi rejeitada por não alcançar o número mínimo de votos para a sua aprovação. Poucos frustraram a vontade da maioria.
Aristóteles nos ensina: "se a liberdade e a igualdade são essenciais à democracia só podem existir em sua plenitude se todos os cidadãos gozarem da mais perfeita igualdade política." O vereador é um representante do povo. Nenhum vereador recebeu 2.950 votos. Nenhum vereador deve se considerar maior que seus representados. Um projeto nascido do desejo de 2.950 eleitores deveria receber tratamento similar. Isso é igualdade política. Isso é democracia!
O movimento contra o reajuste dos subsídios dos vereadores nasceu com a costumeira jogada legislativa de votar temas polêmicos de forma disfarçada, a toque de caixa. Bem ao estilo de exame retal, quando a gente percebe, já foi.
A aprovação do famigerado reajuste não deve ter levado mais do que duas horas. Depois disso, um grupo incomodado passou a participar das sessões com cartazes, palavras de ordem, nariz de palhaço... Os vereadores ficaram com o silêncio, a indiferença e a convocação das forças policiais para protegê-los daqueles “terríveis” manifestantes que ocuparam a tribuna livre duas vezes, que coletaram 2.950 assinaturas para configurar um projeto de iniciativa popular.
Por conta daquelas duas horas corridas, foram 100 dias, desde a primeira manifestação, para decidir que a apreciação do projeto que pede a revogação do reajuste ocorrerá no prazo de noventa dias. Depois da eleição. Por que depois da eleição?
Não condeno o valor dos subsídios dos vereadores. Não vejo neles a grande mazela do poder legislativo. Condeno, isto sim, a prática, quase que delituosa patrocinada (ou acobertada) pelos legisladores brasileiros diante das discussões polêmicas oportunistas ou dos assuntos prejudiciais à maioria.
Não acompanhei a sessão com a esperança de vê-los mudando o voto, reduzindo os próprios salários. Voltaria para casa feliz se o assunto fosse discutido, se a responsabilidade pelo reajuste pretendido fosse assumida. Quem sabe, assim, eles valorizariam mais o cargo outorgado, nos dando argumentos eficazes para cobranças mais consistentes do tipo: a gente paga, a gente cobra. Sem essa de democracia disfarçada.