Escrito por José Antônio Pires de Almeida
Agora que o papa Bento XVI renunciou é interessante debruçar-se atentamente sobre alguns aspectos de seu pensamento, essencialmente conservador. Nossa geração viveu e foi formada numa era em que a academia, as artes e todas as ciências humanas vicejaram sobre a ótica chamada “progressista”. Tivemos pouca ou nenhuma chance de conhecer o pensamento conservador, tanto pela exiguidade de textos publicados como pelo patrulhamento ideológico.
Desde que o muro caiu e os ânimos serenaram o chamado pensamento conservador criou coragem e apareceu. Apesar de ele já ter se manifestado com desenvoltura na economia, em outras áreas do pensamento ainda está meio tímido. Um dos brasileiros formuladores dessa vertente de pensamento é Luiz Felipe Pondé, filósofo, escritor e colunista da Folha de São Paulo. Ele lançou o livro “Do Pensamento no deserto" e deu uma extensa entrevista à Folha de São Paulo de 27 de janeiro de 2012 onde manifestou algumas de suas instigantes elaborações.
Para ela a modernidade é a crença na promessa de que a razão humana, principalmente através da ciência, dá conta da realidade e é capaz de reformar a vida e a sociedade, melhorando a condição do ser humano. Esta certeza iluminista determinou a teoria e a prática do Ocidente desde o fim do século 18. É a confiança de que a razão é o instrumento único e ideal para o conhecimento.
O pensamento conservador não partilha dessa confiança. Edmundo Burke dizia que a sociedade é um contrato entre os mortos, os vivos e os que não nasceram ainda. Isso implica que não devemos romper com o passado como se a adolescência fosse o paradigma da vida. A certeza iluminista e cartesiana fala de um ser humano idealizado, que não existe. A natureza humana é alguma coisa da qual você deve aproximar-se com muito cuidado e que sempre subentende certo mistério.
A escola conservadora não acredita na capacidade do homem de se auto-inventar e se auto-aperfeiçoar. Ele é um animal essencialmente orgulhoso, utilitarista, feroz e hipócrita. O ser humano é agonia e não alguma coisa que tenha solução. A vida é quase sempre uma porcaria e não são os cientistas sociais e antropólogos que nos ajudam a entendê-la, mas Kafka e Dostoievski. Eles nos mostram por que, apesar de quase todas as provas em contrário, a maioria das pessoas insiste em viver. O problema humano é sempre moral, e não político ou social.
Um aspecto da Teologia da Libertação que incomodava o papa renunciante é a idéia de que o "homem é bom" e a de que "o mal é contextual". O ser humano deveria ser capaz de perceber, dizia ele, que apesar de Rousseau, o mal está nele. Se o mal é dissolvido num sistema social então o ser humano não tem o lado sombrio do mal, e ele tem, insiste o papa. O mal é concreto em toda parte, embora às vezes tenhamos dificuldade em defini-lo. O recalque do mal serviu para que fosse construída uma neurose narcísica que atormenta a humanidade.
A leitura dos vários escritos de Bento deixa um gosto amargo de fel, apesar dos seus vigorosos acenos para a esperança cristã. A vida é um risco eterno, o ser humano é uma espécie precária, violenta e atormentada pela falta de sentido e que fracassou na utopia idealista do progresso. Tomamos sempre de dez a zero da vida e o que caracteriza a modernidade é a utopia de que vamos organizar a agonia. Não vamos!
A exortação apostólica Sacramentum Caritatis (O Sacramento do Amor), uma síntese do Sínodo dos bispos de 2005, foi um documento papal que provocou reações iradas, mas, creio eu, não foi examinado devidamente em seu cerne e sim nos aspectos periféricos. Exortação apostólica é uma manifestação papal que nasce de um sínodo e deve orientar a Igreja sobre questões cotidianas.
Neste documento o papa pregou o retorno do latim e do canto gregoriano na celebração da missa, desqualificou a confissão comunitária, criticou padres que se colocam como “protagonistas da ação litúrgica” (os Marcelos Rossis da vida), reafirmou o veto ao aborto, à eutanásia, às uniões entre homossexuais e comparou o segundo casamento entre os católicos a uma “praga social”. Alguns tradutores se embolaram para dizer que “praga” significaria “chaga”, “ferida”, - mas parece que o pontífice quis dizer “praga” mesmo.
Bento XVI formou-se na tradição católica que busca a reforma interior do ser humano, cuja natureza é preciso investigar a fundo, como fez Santo Agostinho. Bento XVI é um agostiniano por excelência. Ele considera que a natureza humana é imperfeita e padece de uma desordem que precisa ser contida. Isso soa de forma antipática aos ouvidos modernos, pois, dentre as ideias que definem a modernidade, está a de que o homem tem condições de tomar consciência de seus limites e aprimorar-se. Essa noção de “ser perfectível”, que pode melhorar com tempo e esforço, surgiu no século 13. Porém, a visão de Agostinho, como a de Bento XVI, é a de que natureza humana tem dificuldades estruturais e, se não for corrigida, se degenera.
A questão da volta ao latim ilustra com mais clareza o pensamento papal. A ação litúrgica é essencialmente um mistério e sua celebração deve realçar simbolicamente esse mistério. A celebração em vernáculo degenerou em leituras de folhetos abstratos e racionalistas, que não atingem o íntimo do ser humano em seu relacionamento com Deus.
Alguns eufóricos ressaltaram esse detalhe do latim e criticaram impiedosamente o ex-papa. Mas o interessante é que os carismáticos e pentecostais se esbaldam em cultos onde se murmuram palavras incompreensíveis e ninguém reclama. Artistas de Hollywood vão à sinagoga e se comprazem ouvindo aquelas cerimônias cabalísticas em hebraico, sem entender nada, e as colunas sociais acham chique. Tem muita gente que se delicia com a musicalidade dos mantras em sânscrito num culto budista. Tudo lindo...! Já quando o papa fala da importância da recuperação histórica do latim e do misticismo do canto gregoriano... É retrógrado! Essa é a grande tragédia do catolicismo: ele engendrou a modernidade e ela o está devorando.
Os intelectuais mais expressivos de hoje formaram-se basicamente no universo marxista, entendendo a democracia política e social como alguma coisa ideal e insuperável. Mas para Bento XVI a modernidade não é um ponto de partida, mas um momento complexo na história da humanidade. Um momento que vem se desgastando. Enquanto os modernos acham que é melhor distribuir camisinha, o ex-papa dizia que devemos enfrentar os impasses da família em desequilíbrio, onde as pessoas já não cuidam mais uma das outras. Enquanto nós acreditamos que o importante é ser feliz Bento XVI dizia que é normal que o ser humano se sinta em pecado, porque ele está em pecado.
O ex-papa levava a sério o fato de que o mal existe no mundo e não aceitava a ideia de o mal é um conceito derivado das injustiças sociais, por exemplo. O mal está posto no mundo, não é uma criação humana. O papa não era freudiano e nem marxista. Segundo as teologias para as quais ele se voltava, o mal é da ordem da decomposição do ser. Bento XVI entendia que a experiência religiosa deve dialogar com a razão. A razão, sozinha, se degenera em ceticismo e niilismo. Talvez isso seja o grande beco sem saída das utopias: a crença de que a razão, apenas ela, consegue administrar a vida. Bento XVI achava que a razão, sem a angústia religiosa, acaba se transformando em algo risível, banal, niilista.
Quando houve aquela confusão dele com o mundo islâmico, acharam que ele tinha pedido desculpas. Acho que não. Foi e continuou sendo mal entendido. Ele queria dizer que, toda vez que se rompe o diálogo entre razão e fé, as vocações religiosas tornam-se sombrias.
Tudo isso é muito complicado. Os grandes teólogos brasileiros de hoje não foram interlocutores devidamente habilitados para encarar este ex-papa. As melhores cabeças foram formadas na Teologia da Libertação e ainda vivem sob a ótica de uma visão sócio-analítica do mundo. É preciso conhecer muito da obra de Von Baltazar (teólogo suíço alemão morto em 1988) ou de Henri de Lubac (teólogo francês), decisivos na formação do Bento XVI, mas quase desconhecidos por grande parte da formação teológica brasileira.
Muitos dizem que com essa postura Bento XVI afastou mais gente da Igreja. Quanto a isso é interessante retomar um pronunciamento da então cardeal Ratzinger, publicado pela revista 30 DIAS pouco antes do conclave que o elegeu: “A Igreja diminuirá de tamanho. Mas dessa provação sairá uma Igreja que terá extraído uma grande força do processo de simplificação que atravessou, da capacidade renovada de olhar para dentro de si. Porque os habitantes de um mundo rigorosamente planificado se sentirão indizivelmente sós. Descobrirão, então, a pequena comunidade de fiéis como algo completamente novo. Como uma esperança que lhes cabe, como uma resposta que sempre procuraram secretamente”.
Eu não sei a real dimensão do relatório apresentado a Bento XVI sobre os escândalos financeiros e sexuais do Vaticano. Mas para um homem deste perfil, avesso a negociações demasiado racionalistas, a renúncia é compreensível. Quanto ao papa Francisco eu tenho esperanças e inquietações. Quando as coisas se acalmarem e ele se pronunciar poderemos conhecê-lo melhor e deduzir quais serão os traços marcantes de seu papado.